Ao revisitar o tema do aborto, percebi que a discussão sobre
esse tema quase sempre toma rumos completamente aleatórios e termina em
questões outras. Então resolvi escrever este texto para que alguns pontos
fiquem claros e, obviamente, para expressar minha opinião, eu juro que em
próximos temas vou escrever um post por tema, escrever menos e tal... Mas
sinceramente, é difícil abordar temas complexos com poucas palavras, tudo bem? Então aguentem firme.
Já de início, devo expressar
minha opinião, nunca fui a favor do aborto, aliás, nem contra o mesmo, mas o
que isso realmente significa?
Temos a resposta... Mas
qual a pergunta mesmo?
Na maioria das vezes em que o assunto aborto vem à tona, o
que se ouve é: “Sou contra” ou “Sou a favor” como acabei de fazer acima, no
entanto, as afirmativas "ser a favor ou contra" o aborto muitas vezes
é fruto de uma pergunta estruturalmente destinada ao fracasso, ou do viés de quem pergunta.
Bom, mas se existe uma resposta, deve então haver uma
pergunta, e essa pergunta, a meu ver, quando feita corretamente, deve ser
formulada da seguinte forma: “Você é a favor ou contra que mulheres tenham o
direito de decidir manter ou não uma gravidez?”. O problema é que a maioria das
pessoas acha que quando se fala de aborto, a pergunta implícita é “Você gosta
da ideia do aborto?” ou “Você é a favor de matar bebezinhos?”... E essas perguntas são bem diferentes.
E antes de mais nada, e pensando na pergunta correta, respondo que sim, eu sou a favor de que a mulher tenha o
direito de decidir manter ou não uma gravidez.
Eu quero ter o direito de fazer o que eu quiser com o meu corpo, não quero fazer nada, mas quero ter o direito de fazer se quiser. Vamos pensar em um exemplo bobo, mas que carrega o mesmo
sentido: Uma mulher "A" diz que quer fazer sexo com um homem "B",
eles vão para um motel e lá, ela percebe que não quer mais transar. Então
respondam a pergunta: “Você é a favor do direito de 'A' ir embora do motel sem
fazer nada" ou “Já que 'A' disse que queria fazer sexo e foi para um
motel, agora ela deve manter sua decisão prévia”?
Ah, Fernando, mas o que tem isso a ver com o
aborto?... Nada, tem a ver com decisões, e eu sou a favor de que as pessoas tenham
o poder de decisão sobre o próprio corpo.
Argumentos Pró-vida (ou, por que no dos outros é refresco!?)
Alguns podem dizer “Mas é uma vida, e ninguém tem o direito
de decidir tirar uma vida. Assassinato é crime...”. Bom, se é assim, devemos
parar de comer carne... Na verdade, deveríamos parar de comer vegetais também,
uma alface é um ser vivo... E quanto aos inseticidas? E os antibióticos
(bactérias são seres vivos)? E os vermífugos? E quando seu cãozinho está sofrendo de uma doença sem cura?
E aí o argumento sempre é “Mas a vida humana é mais importante, a
vida humana é sagrada...”.
Fonte: Feminismo sem Demagogia |
Bom, primeiro, para discutir isso se faz necessário que
criemos critérios bem estabelecidos sobre o valor da vida humana, por que o que
não falta é gente que não quer que mulheres tenham o poder de decisão de abortar
(por que a vida humana é importante), mas são a favor de que o Estado tenha o
poder de decidir sobre a vida e a morte de criminosos... Bizarro! Mas este é um caso a parte, e se você está
dentro deste grupo, não vale a pena discutir... Pare de ler aqui mesmo...
Se não for este o caso, meu argumento em favor da
descriminalização do aborto é que, um ser humano não é criado a partir da fecundação, e NÃO, não existe essa de que "Todos os cientistas dizem que a vida começa na fecundação!"... NÃO!! Isso é mentira!.
E se estudarmos um pouco de embriologia, vamos observar que a posição mais defendida é a de que, até a décima semana não há nenhum indício de atividade cerebral, portanto, não, o aborto não
mata seres humanos. No máximo, o aborto antes da décima semana, pode ser
comparado a matar um ser vivo mais ínfimo que um protozoário
(que você mata sem culpa ao tomar um vermífugo)... Mas quem é contra a
descriminalização do aborto, geralmente não quer nem pensar em embriologia, então... De que adianta?
Mas, voltando a questões práticas, durante minhas pesquisas
em fontes diversas sobre o tema, assisti a este vídeo que dá um exemplo ótimo
sobre a questão do direito ao aborto:
Imagine que o Estado Brasileiro crie uma lei que criminaliza qualquer
pessoa que não doe um órgão para crianças que estejam entre a vida e a morte. Então
você está lá, numa boa, e tem uma criança que precisa de um rim para sobreviver.
E por ventura descobrem que você é um doador viável (olha que legal!) sendo
que, de acordo com a lei, se você não doar um rim, você vai ser preso,
humilhado em praça pública pela moral vigente e taxado como um criminoso...
...E aí, você concorda com isso? Você acha que o Estado tem o
direito de controlar o seu corpo para salvar uma vida? Afinal, é uma lei pró-vida. Deixa eu repetir a pergunta de
forma mais enviesada (como geralmente fazem com a questão do aborto): "Você é a favor da criança morrer por conta do seu
egoísmo"?
...não... "Não!? Que absurdo,
tomara que 'pegue' um câncer..."
Aliás, pensando num argumento "pró-vida", vamos
ampliar essa lei, afinal, temos que ser criteriosos: Quem tiver o fígado
inteiro vai doar parte também... Pulmões, olhos, mãos, pernas.... Não importa, vamos doar tudo o que temos
dobrado para salvar uma vida, afinal, a vida humana é sagrada... E essa será a
LEI!...
Acho que não, né? Talvez eu tenha ido longe demais... Não
posso obrigar, por lei, o que as pessoas devem fazer com seus corpos, mesmo que
seja em prol de uma vida. Né?
Criminalizar é criar criminosos
Outro problema que percebo nessa questão é a culpabilização da mulher que
engravida e não quer ter o filho, o que é um absurdo, por que... Bom, merdas
acontecem. Surpresas, acidentes, nossa vida é cercada de coisas parecidas, mas
o fato é que muitas pessoas acreditam que se uma mulher ficou grávida
acidentalmente, ela é a culpada, e como punição deve ter o bebê, por que, afinal "coitado, não tem culpa". Eu (e todas as mulheres com as quais eu transei) sempre fui muito precavido, tive uma educação rígida quanto a isso e,
principalmente... Tive sorte... Por que coisas assim podem acontecer em
qualquer lugar, em qualquer momento... A não ser que você não faça sexo... Então, neste caso... Bom, boa sorte com isso também...
Outro argumento que a mulher tem que ouvir é aquele que diz que "uma mulher que opta pelo
aborto nunca mais é a mesma, vive na culpa e na agonia de que matou um filho".
Mas para mim isso parece um pouco óbvio de que a relação do sentimento ruim não se encontra na "culpa por ter matado um filho", mas sim na culpabilização dessa mulher pela sociedade e pela LEI!!!. Se eu
me encontrasse em uma situação em que precisasse cometer um crime para
sobreviver, é claro que viveria com esta culpa, mas isso não fosse crime, e se houvesse um aparato
social, psicológico e médico, amparados pela lei, e que me auxiliasse neste
momento de decisão (e da ação propriamente dita), eu conseguiria ultrapassar
esta barreira, tendo uma vida normal e me sentindo integrado a sociedade.
Infância e pureza (ou, sobre as mentiras que contamos para nós mesmos...)
Outro ponto importante que influencia e muito nesta
discussão é a sacralização da infância e da maternidade. E, infelizmente, devo inserir nesse momento a religião
cristã como grande influencia em nossa sociedade (eu tentei não entrar nisso, mas não rolou...). Na época em que o
conceito de infância estava começando a surgir (Philippe Aries, 1973), e que
a sociedade começou a perceber que o período entre o nascimento e o começo da
fala era de extrema importância para o indivíduo, também coincidia com um período em que a
mortalidade infantil era gigantesca (nos
séculos 17 na Europa e 18 no Brasil). E para explicar esta mortalidade, os padres diziam que essas crianças viravam
anjinhos no céu, e que deus as queria perto dele e por isso não sobreviviam... Ou seja, além da sociedade perceber a importância da infância, a religião deu ares de sacralidade à mesma...
Durante a mesma época, e fruto e produtor deste mesmo pensamento (importância da infância e das criancinhas mortas), a maternidade, vista como o grande papel da mulher no mundo, torna-se também algo
mais sagrado ainda, em que o amor e o cuidar de uma mãe torna-se algo inato e imprescindível.
No entanto, a relação entre mãe e filho é também algo construído, assim como a própria concepção de infância, ou seja, este amor sagrado e inato, é na verdade um “Amor Conquistado” (Elizabeth Badinter, 1985), e
só existe da forma que enxergamos atualmente por conta de nossa cultura... É claro que entre os mamíferos, a relação entre mãe e filho é naturalmente importante, mas entre os seres humanos, criou-se uma sacralização de algo que, in natura, não é lá grandes coisas...
De acordo com Badinter: “Como então, não chegar à conclusão, mesmo que ela pareça
cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e, como tal, essencialmente
contingente? Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer.
Mostrar-se forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo
depende da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal
nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno não é
inerente às mulheres. É ‘adicional’” (p. 367).
Conclusão?
Bom, para finalizar, devo repetir que o importante nisso
tudo, é preservar direitos, dar liberdade de escolha. Algumas pessoas acreditam que a doação de sangue e/ou órgãos vai contra os princípios divinos,
mas isto não implica na criação de leis que proíbam ou obriguem este tipo de
procedimento, então por que o aborto, visto como um procedimento médico no
corpo de uma mulher, deveria sofrer tal criminalização?
*Essa é uma "repostagem" e reedição do post publicado no blog Joaninhas no Sotão.
Pra quem quiser ler:
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1973.
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.
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